Por Davi J. Fontoura Solla, Residente em Neurocirugia – Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Neste primeiro trimestre de 2019, foi publicado o estudo MISTIE III [1], o mais recente, e o primeiro de fase III, de uma série de clinical trials coordenados pela Johns Hopkins University com o objetivo de avaliar a efetividade de Neurocirurgia minimamente invasiva para hematoma intracerebral espontâneo comparado ao tratamento clínico, não-cirúrgico. Estudos prévios sugeriam uma tendência a benefício da estratégia cirúrgica minimamente invasiva, porém a qualidade destes deixava a desejar… alguns não-randomizados, outros com falha de cegamento, técnicas cirúrgicas não padronizadas, muitos com tamanho amostral pequeno… Ainda que metanálises, inclusive, tenham sugerido benefício da estratégia cirúrgica minimamente invasiva, devemos lembrar que a qualidade da evidência de uma metanálise nunca será maior que a qualidade do estudos incluídos. Estudos de qualidade duvidosa permitirão apenas metanálises com resultados duvidosos.
O estudo MISTIE III
O estudo MISTIE III randomizou pacientes adultos, com hematoma intracerebral supratentorial espontâneo com volume ?30ml até 72h do ictus para tratamento neurocirúrgico minimamente invasivo ou tratamento clínico. O tratamento neurocirúrgico minimamente invasivo consistiu de: trepanação para inserção, guiada por imagem (neuronavegação), de uma cânula rígida no maior eixo do hematoma; aspiração “free hand” do hematoma, pelo neurocirurgião, até percepção de resistência; e aposição de um cateter na cavidade do hematoma residual para infusão de 1ml de Alteplase (1mg/ml) a cada 8h por até 72h (até 9 doses) ou até que o hematoma reduzisse a <15ml (monitorado por TC de crânio diária) ou houvesse ressangramento com piora neurológica.
O resultado quanto ao desfecho primário de bom desfecho funcional (escala de Rankin modificada, mRS, de 0-3) foi negativo (45% vs 41%, p=0·33), sem diferença entre os grupos. Nas redes de notícias especializadas, o resultado foi decepcionante para alguns, enquanto outros até aventaram ser este o fim da cirurgia (minimamente invasiva ou não) para hematomas intracerebrais espontâneos.
Análise de subgrupo: hematoma residual pós-cirúrgico <15ml
Entretanto, chamou atenção e muitos ficaram entusiasmados com o resultado positivo para aqueles pacientes que atingiram o objetivo, definido a priori [2], de hematoma residual <15ml. Comparado ao grupo conservador, não-cirúrgico, estes pacientes apresentaram melhor desfecho funcional, com proporção 10,5% maior de mRS 0-3 (IC 95% 1,0 – 20,0%, p=0,03), ajustado para idade, escala de coma de glasgow, volume de sangramento intraventricular, localização do hematoma (profundo ou lobar, superficial) e doenças cardiovasculares. Será este um alvo a ser atingido enquanto objetivo cirúrgico para se obter benefício? Necessitamos de cautela antes de aplicar este resultado à nossa prática diária.
Surgeon Compliance Bias
Anos de erros e acertos da medicina baseada em evidências tem nos ensinado que aqueles pacientes que conseguem boa adesão ao tratamento proposto são diferentes daqueles que não o conseguem. A este fenômeno foi dado o nome de Compliance Bias, descrito por David Sacket já no final da década de 70 [3]. Ainda que originalmente descrito no contexto de adesão medicamentosa, podemos traçar um paralelo com ensaios clínicos cirúrgicos. Os pacientes que atingem bom resultado cirúrgico frequentemente são diferentes daqueles com resultado cirúrgico insatisfatório. Ainda que se queira (e se possa) atribuir o pior resultado à perícia do cirurgião, nem sempre este é o culpado pela “não-adesão” ao objetivo cirúrgico proposto – Surgeon Compliance Bias. De fato, os pacientes que atingiram um hematoma pós-cirúrgico residual <15ml apresentavam hematomas 10ml menores na tomografia de crânio de admissão (mediana 36,8ml vs 46,5ml) e 20ml menores na TC antes da randomização (mediana 39,7ml vs 58,2ml) que aqueles com hematoma residual >15ml [4]. O volume do hematoma pré-randomização não foi uma variável incluída no ajuste daquela análise citada acima. Ainda neste tópico, deve-se ressaltar que a intervenção cirúrgica do MISTIE III, trepanação e inserção de cateter guiada por imagem/neuronavegação, é relativamente simples do ponto de vista técnico, de forma que espera-se pouca margem de erro na execução, ainda que muitos cirurgiões dos centros incluídos no trial não tivessem muita experiência prévia com o procedimento específico. Inclusive, talvez o procedimento fosse até mais homogêneo e padronizado se realizado por robôs cirúrgicos (auxiliares inevitáveis no futuro breve), mas isso é tema para outra discussão.
Surgical Performance Bias
O viés de performance (performance bias) acontece quando o paciente ou o médico/pesquisador sabem a qual grupo o paciente foi alocado. Nesta situação, o cuidado pode ser diferente entre os grupos intervenção e controle e o cegamento é a estratégia mais poderosa para preveni-lo. Em ensaios clínicos envolvendo intervenções cirúrgicas, é sempre um desafio o cegamento dos pacientes e das equipes de cuidado. É possível, porém por vezes muito difícil. O MISTIE III, como tantos outros trials cirúrgicos, foi um estudo open-label, sem cegamento – neste caso, considerando a necessidade de manter um cateter intracraniano por até 72h, podemos dizer que seria quase impossível cegar a equipe de cuidado. Esta impossibilidade, entretanto, não deve nos levar a ignorar potenciais vieses inerentes ao não-cegamento, mas sim interpretar os resultados à luz destes. Os pacientes do grupo controle conservador sofreram “withdrawal of care” (limitação da intensidade do cuidado – um proxy para paliação) em 14,0% versus 6,9% no grupo intervenção que atingiu hematoma residual <15ml (diferença 7,1%, IC 95% 0,35 – 13,2%, p=0,048) [4]. Esta variável também não foi incluída no ajuste da análise para o desfecho funcional. Ou seja, é possível que a decisão pela limitação dos cuidados tenha sido influenciada pelo grupo ao qual o paciente foi alocado e esta pode ser uma importante confundidora para o efeito da intervenção. O grau de “investimento” despendido tende a ser maior para os pacientes para os quais já houve “investimento” prévio (manejo intervencionista vs conservador) e, principalmente, se a intervenção foi considerada efetiva (hematoma residual <15ml vs >15ml) – um fenômeno que podemos entender como Surgical Performance Bias.
Conclusão
Com as críticas acima, não pretendo desacreditar a intervenção cirúrgica para melhoria dos desfechos de pacientes com hematoma intracerebral espontâneo. Afinal, estou no lado neurocirúrgico da força. Realmente acredito que uma técnica cirúrgica minimamente invasiva adequada, bem indicada e aplicada com perícia ao perfil correto de pacientes, deverá resultar em melhores desfechos. Pelo menos outros três trials estão em andamento (ENRICH [5], MIND [6], and INVEST [7]). Ainda há algum caminho pela frente, mas aos poucos a névoa (mist) da incerteza nesta questão vai se dissipando e vamos enxergando com mais clareza…
2. Minimally Invasive Surgery Plus Rt-PA for ICH Evacuation Phase III – Full Text View – ClinicalTrials.gov [Internet]. [cited 7 May 2019]. Available: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT01827046
3. Sackett DL. Bias in analytic research. J Chronic Dis. 1979;32: 51–63.
5. ENRICH: Early MiNimally-invasive Removal of IntraCerebral Hemorrhage (ICH) – Full Text View – ClinicalTrials.gov [Internet]. [cited 7 May 2019]. Available: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT02880878
6. MIND: Artemis in the Removal of Intracerebral Hemorrhage – Full Text View – ClinicalTrials.gov [Internet]. [cited 7 May 2019]. Available: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT03342664
7. INVEST Feasibility – Minimally Invasive Endoscopic Surgery With Apollo in Patients With Brain Hemorrhage – Full Text View – ClinicalTrials.gov [Internet]. [cited 7 May 2019]. Available: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT02654015