RANDOMIZAÇÃO MENDELIANA, O ENSAIO CLÍNICO NATURAL

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Por Davi J. Fontoura Solla, Residente em Neurocirugia – Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

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Estudo publicado recentemente na revista Scientific Reports (publicação open access da Nature Publishing Group) reforça uma possível causalidade entre obesidade e risco de Meningioma [1]. Já existem trabalhos publicados sobre esta possível associação desde pelo menos a década de 80. Então, por que este novo estudo é relevante? E o que, afinal, é Randomização Mendeliana?

Tumores cerebrais primários, em geral, possuem poucos fatores de risco bem documentados, se desconsiderarmos as síndromes genéticas. Para os Meningiomas, o tipo de tumor cerebral primário mais comum, podem ser citados a idade, hormônios e, talvez, o gênero, mas os fatores de risco modificáveis são ainda mais escassos, restringindo-se à radiação. Apesar das teorias sobre a associação entre obesidade e Meningioma, não seria ético ou factível desenhar um ensaio clínico para randomizar os pacientes para serem ou não obesos para testar a causalidade da relação. Por isso, todas as evidências até então eram provenientes de estudos observacionais, com todas as limitações inerentes a este tipo de desenho de estudo. A Randomização Mendeliana é justamente uma estratégia para tentar superar essas limitações. Este foi o primeiro estudo a utilizar a metodologia de Randomização Mendeliana para investigar fatores de risco para Meningioma (um dos poucos para tumores cerebrais, na verdade).

A Randomização Mendeliana pode ser entendida como um ensaio clínico desenhado pela natureza. Pela segunda lei de Mendel, segregação independente, os alelos são distribuídos para a prole de forma aleatória. Assim, eventualmente teremos sujeitos com variantes genéticas que predispõem a determinada característica de interesse (como a obesidade, por exemplo). Teremos, então, de forma análoga ao ensaio clínico tradicional, sujeitos com “alelos-intervenção” (alelos sabidamente associados à característica de interesse) e sujeitos com “alelos-controle” (não associados a tal característica) – dois grupos definidos de forma randômica, cuja beleza e poder está em promover o balanço dos grupo quanto a fatores de confusão observáveis e não-observáveis. O cegamento também estaria garantido, já que ninguém sabe sua composição genética.

Analogia entre a Randomização Mendeliana e o ensaio clínico convencional
Davies et al [2]

No estudo em análise, variações genéticas (polimorfismos de nucleotídeo único, single nucleotide polymorphisms, SNP) sabidamente (por estudos genômicos prévios) associadas a 11 características, ou traços, associados à obesidade foram estudadas (IMC, taxa metabólica basal, percentual de gordura corporal, pressão arterial sistólica e diastólica, glicemia, Colesterol total e suas frações HDL e LDL, triglicérides e circunferência abdominal). As informações genéticas de pacientes com ou sem Meningioma foram provenientes de um estudo prévio que havia analisado o perfil genético de >1500 sujeitos com Meningioma e quase 10.000 sujeitos controle. Em resumo, o IMC (OR 1.27, IC 95% 1.03–1.56, p=0.028) e o percentual de gordura corporal (OR 1.28, IC 95% 1.01–1.63, p=0.042) foram significativos para aumento do risco de Meningioma. Nenhuma das outras características investigadas foi significativa. Os mecanismos possíveis envolveriam hormônios estrógenos (facilitado pela conversão periférica, no tecido adiposo, de androgênios em estrogênios), um estado de inflamação crônica e/ou interações entre o IGF e leptina (produzida pelo tecido adiposo) com possíveis fatores de crescimento.

Esta engenhosa metodologia de análise, “simulando” um ensaio clínico, é bastante recente (proposta na literatura pela primeira vez em 2003) [3], até porque depende do conhecimento do perfil genético, mas vem crescendo de forma exponencial na última década. No gráfico abaixo, vemos o histórico do número de publicações por ano no Pubmed com o termo “Mendelian randomization [title/abstract]” .

Número de publicações por ano com o termo “Mendelian randomization [title/abstract]

Especificamente para tumores cerebrais, a busca por “Mendelian randomization AND (brain tumor OR brain cancer OR glioma)” retorna apenas 8 estudos, sendo 6 específicos para tumores cerebrais primários (o mais antigo em 2015) e 2 para tumores de diversos sistemas, incluindo tumores cerebrais. Considerando o gráfico acima com a tendência global, devemos ver cada vez mais estudos com esta metodologia também no campo da neurocirugia e neurociência.

Comparado aos estudos observacionais, é superior na neutralização de fatores de confusão e não está sujeito a vieses relacionados à variável de exposição (causalidade reversa, vieses de mensuração), a qual é uma variante genética e, portanto, constante ao longo da vida. Mas, para que seja válido, deve obedecer a alguns pressupostos principais: a variante genética deve estar associada à exposição de interesse (pressuposto de relevância); a variante genética não pode ser associada a fatores de confundimento (não pleiotropismo horizontal); e esta variante genética não deve predispor ao desfecho / doença por outro mecanismo paralelo que não a exposição de interesse (exclusion restriction).

Entre as limitações, cada variante genética / SNP explica apenas uma fração muito limitada da variabilidade do fator de risco. E mesmo conjuntos de SNPs explicam frações ainda limitadas da variabilidade. Para a obesidade por exemplo, os SNPs incluídos nesse estudo Meningioma, explicam apenas 7,5% da variabilidade do IMC e 5,8% da variabilidade do percentual de gordura corporal. Por consequência, grandes tamanhos amostrais podem ser necessários. Outra limitação digna de nota no estudo é a perda da significância estatística do IMC e percentual de gordura corporal se ajustados para múltiplas comparações, o que foi reconhecido pelos autores. Ainda assim, o fato de esta ser uma hipótese pré-concebida, com boa probabilidade pré-teste (“pré-ensaio”) dados os estudos prévios [4,5], inclusive com sugestão de efeito dose-dependente [6] (um dos famosos critérios de causalidade de Hill), e não terem ocorrido significâncias inesperadas, ao acaso, para as demais características investigadas, minimiza nossa preocupação e ouso dizer que não seria errado ter dispensado essa “correção para múltiplas comparações” (exigência do revisor?). Por fim, o estudo foi restrito a sujeitos com ascendência européia, o que poderia limitar a validade externa do achado, mas estudo multiétnico publicado também este ano não identificou interação entre a etnia e o efeito do IMC no risco de Meningioma [7].

Estudos com Randomização Mendeliana vão se tornar cada vez mais frequentes e já estão ajudando a indústria farmacêutica a testar, de forma mais rápida, barata e eficiente, novos medicamentos e seus potenciais efeitos terapêuticos e adversos.

1. Takahashi H, Cornish AJ, Sud A, Law PJ, Disney-Hogg L, Calvocoressi L, et al. Mendelian randomization provides support for obesity as a risk factor for meningioma. Sci Rep. 2019;9: 309.

2. Davies NM, Holmes MV, Davey Smith G. Reading Mendelian randomisation studies: a guide, glossary, and checklist for clinicians. BMJ. 2018;362: k601.

3. Smith GD, Ebrahim S. “Mendelian randomization”: can genetic epidemiology contribute to understanding environmental determinants of disease? Int J Epidemiol. 2003;32: 1–22.

4. Shao C, Bai L-P, Qi Z-Y, Hui G-Z, Wang Z. Overweight, obesity and meningioma risk: a meta-analysis. PLoS One. 2014;9: e90167.

5. Sergentanis TN, Tsivgoulis G, Perlepe C, Ntanasis-Stathopoulos I, Tzanninis I-G, Sergentanis IN, et al. Obesity and Risk for Brain/CNS Tumors, Gliomas and Meningiomas: A Meta-Analysis. PLoS One. 2015;10: e0136974.

6. Zhang D, Chen J, Wang J, Gong S, Jin H, Sheng P, et al. Body mass index and risk of brain tumors: a systematic review and dose-response meta-analysis. Eur J Clin Nutr. 2016;70: 757–765.

7. Muskens IS, Wu AH, Porcel J, Cheng I, Le Marchand L, Wiemels JL, et al. Body mass index, comorbidities, and hormonal factors in relation to meningioma in an ethnically diverse population: the Multiethnic Cohort. Neuro Oncol. 2019;21: 498–507.