A batalha continua
Autor: Bruno Porto ( neurologista e ex-residente da Santa Casa de Belo Horizonte)
A pintura azul da Matriarca Centenária contrastava com o céu nublado quando cheguei naquela fria manhã. A cor azul da esperança por dias melhores parecia elevar o baluarte no meio do caos, erguendo mais de mil leitos às dádivas da ciência.
Ambulâncias drenadas de diversos pontos do Estado aportavam cheias de pacientes graves, em maior parte idosos. Vi suas faces de dor enquanto adentrava serenamente a cidade-hospital.
Subi o primeiro lance de escadas já com milhares de memórias cravadas na minha nuca, a cada circuição no caminho abarrotado de parentes de enfermos, residentes com a boca seca pelo café atrasado e chefes de departamento poli-atarefados.
Vi o bloco cirúrgico nomeado de Atos Alves de Souza e senti a proteção das mãos de ouro perante todos os necessitados. E toda frase bem humorada dele parecia amortecer as coisas por lá.
Senti também as mãos de outros vários mestres que passaram ali, como nosso ex-presidente Juscelino Kubitschek.
Ao chegar no quarto andar sentia as artérias dos meus punhos e têmporas latejarem com neurotransmissores emotivos, um déjà vu de milhares de contas de rosários no tempo.
O extenso corredor, antes amarelado, foi pintado de branco e clareava recordações: quantas vezes eu corri ali de um lado e de outro para socorrer pessoas e a mim mesmo… cada admissão, cada alta, cada falecimento entrou como um turbilhão no meu crânio. Lembro-me do meu primeiro dia de mãos sudoréticas, quando minha ansiedade foi dizimada por uma frase dita por uma enfermeira à outra: “Fulana, ARREDA aquela mesa ali pra gente”. Senti-me naquele momento em casa, em Minas Gerais.
Gemidos no local denunciavam que a luta continua. Os quartos estavam cheios de gente com cabeça raspada e com grandes cicatrizes, livres total ou parcialmente de tumores, com aneurismas corrigidos, doenças auto-imunes sob tratamento, isquemias cerebrais sob recuperação e doenças raras a ser diagnosticadas.
Lembrei-me de ter montado um Playstation 2 na enfermaria e jogar FIFA com o meu paciente com câncer, para tentar distrair sua tristeza.
Vi os novos residentes debruçados nas prescrições, como em uma trincheira, um grupo de soldados sorridentes apesar do salário péssimo e das noites sem dormir.
“Vocês terão muita saudade disso aqui”- confortei-os com os olhos sinceramente úmidos.
Então passei por cada andar. No sexto andar lembrei de um homem com câncer de laringe que teve um vaso estourado no sítio de traqueostomia, vertendo um jato de sangue de sua garganta até o teto. Ele perdeu a vida lívido como cal, um cheiro de ferro impregnou todo o andar. Lembro da equipe trêmula limpando todo aquele sangue, nunca vi tanto sangue sair de uma pessoa só. Pobre senhor, mais uma vítima do cigarro, no dia anterior ele contava sobre a sua infância cheia de dificuldades e pouco acesso à escola. Outras centenas de cenas dramáticas refluíram em minhas retinas e o meu coração apertou-se.
No sétimo andar lembrei de um paciente que viu a morte de perto, e pediu sua namorada em casamento durante a alta hospitalar: foi uma das cenas mais lindas que eu já vi.
No nono andar lembro de um velhinho de 106 anos que me ensinou que a vida é tanto mais longa quanto mais carregada de amor e compaixão, e menos carregada de valores passageiros. Suas lágrimas de felicidade me contagiaram.
Fui bombardeado com muitas histórias dignas de filme. E entendi a razão da arte imitar a vida e não o oposto.
Fui então para o centro de admissão de pacientes, e revi um grande soldado da Clínica Médica: Guilherme Aquino. Na verdade, general, apesar de ele não saber disso pela sua humildade. Ele implantou importantes dinâmicas para aumentar resolutividade, reduzir períodos de internações e otimizar recursos e exames em época de parcos repasses do governo. A situação está vermelha. Nossa Santinha, assim como vários hospitais do país, está ficando de joelhos frente à corrupção e a canhestras prioridades.
“Mas é na crise que nos unimos, é na crise que buscamos nos melhorar como pessoas e profissionais”, disse o general, ao ser avisado da chegada de um paciente de hemodiálise com infecção de cateter e sepse, com a pressão arterial baixíssima.
A guerra continua.
Deu vontade de largar tudo e voltar para lá, mas muitas pessoas no Triângulo Mineiro precisam de ajuda também.
Enxuguei a testa e fui ao CTI do outro hospital do complexo, o São Lucas. Local onde nasceu nossa ex-presidente Dilma Roussef.
Ali abracei prontamente um homem de cabelos brancos, mais um grande professor, o Dr. Carlos Eduardo, neurocirurgião de voz plácida e ensinamentos humanos. Participei de uma corrida de leito com a residente, e ele me deu espaço para opinar nas condutas. Foi muito gratificante poder ajudar mais uma vez naquele cenário cheio de sofrimento.
A gratidão é o sentimento mais merecedor de nosso cultivo.
Ao pegar o táxi de volta para casa, eu estava flutuando em meus pensamentos. De repente, todo aquele passado se anunciou como o mais atual presente que urgirá muito mais trabalho e doação de todos.
A Santinha nunca fica no passado, ela é sempre futuro.
Santinha, feita de tijolos de esperança. Santinha, prédio de carne e osso, prédio de artérias e veias latejantes. Templo do sofrimento e da salvação. Castelo de pedra e de lágrimas. Cidade do amor e da angústia. O Brasil em síntese.
Obrigado, Santinha!!!!!
Boa sorte, Santinha!!!!
Bruno Porto
Fotos retiradas do Facebook do Bruno Porto