Eles estão há 40 anos na UTI
Paulo Machado e Eliana Zagui são os pacientes mais antigos do maior hospital do País. “Eu ainda quero sair daqui”, diz ela
Fernanda Aranda, iG São Paulo | 14/09/2011 10:59
Foto: Edu Cesar/Fotoarena Ampliar
Eliana Zagui tem 37 anos e está internada desde o primeiro ano de vida por causa da paralisia infantil
Ela sorri e diz que o filme mais bonito que já viu na vida foi Dirty Dancing, aquele com o Patrick Swayze, que no Brasil foi chamado de Ritmo Quente.
Quando o longa estreou, em 1987, Eliana Zagui, hoje com 37 de idade, tinha 13 anos e já estava internada em um leito de UTI há 12 anos. Ela devorou cada minuto da sessão de “cinema hospitalar”. De lá para cá, ainda hospitalizada, Eliana já reviu 18 vezes o mesmo filme.
Bem ao seu lado, está internado Paulo Henrique Machado, cinéfilo desde menino, que tem uma queda por animação e já recebeu visitas ilustres em seu leito, como a de Carlos Saldanha, produtor brasileiro que participou de a Era do Gelo.
“Eu ainda vou fazer meu próprio filme, em 3D, com bonecos de massinha, todos deficientes físicos”, conta ele com 43 anos, 42 passados dentro do Hospital das Clínicas de São Paulo.
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Paulo Henrique Machado, 43 anos, internado há 42 anos, foi o primeiro paciente da UTI do Hospital das Clínicas
Eliana e Paulo são os pacientes mais antigos do maior complexo hospitalar da América Latina. Estão hospitalizados há quatro décadas, representando as últimas vítimas do surto de paralisia infantil que ocorreu no Brasil no início da década de 70.
São testemunhas vivas de um momento muito difícil da saúde do País e assistiram não apenas à erradicação desta doença em território nacional (graças à vacinação em massa), como o surgimento das primeiras unidades de terapia intensiva (UTI) para pacientes graves que, assim como eles, não podiam voltar para casa.
O vírus da poliomelite tirou os movimentos das pernas de Paulo e também comprometeu a sua capacidade de respirar sozinho. Eliana só consegue movimentar os olhos e a boca e, da mesma forma, para que o ar chegue aos pulmões, precisa da ajuda de um aparelho (pesado e caro).
Foto: Edu Cesar/Fotoarena Ampliar
Eles passaram a infância, a adolescência e a vida adulta nos leitos. E fizeram dos quartos de UTI suas casas
Ele tinha 1 ano e três meses quando foi internado e ela quase dois anos. Foram encaminhados para o Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do HC, em um prédio que só cuidava de crianças acometidas pela pólio. Alguns pacientes tiveram alta, outros não sobreviveram. Pouco a pouco, acidentados de carro, vítimas de queda de motocicletas e de violência começaram a dividir espaço naquele edifício feito originalmente para a paralisia infantil.
Éramos 7
Ainda que com pacientes mais variados, uma ala especial do “prédio da pólio” foi reservada para as sete crianças com poliomelite que ainda não tinham liberação médica para voltar para suas residências. Neste mesmo período, a especialidade médica chamada “intensivista” já havia nascido e aquele grupo de pequenos pacientes passou a receber cuidados permanentes de diversas especialidades médicas em um só local.
O tempo foi passando e a cada ano, uma das camas ficava vazia, pontuando a gravidade da pólio e a necessidade de aperfeiçoar os cuidados da UTI. “Éramos sete. Ficaram apenas eu e o Paulo. O que mais sinto saudade é da época das festas juninas, quando todos nós vestíamos roupas de caipira, fazíamos tranças e só dávamos risadas com as bandeirolas e cantigas típicas que montavam para gente.”
Descobertas
Na posição horizontal, Eliana e Paulo Henrique descobriram um mundo cheio de possibilidades. Ele lembra de ver pela televisão, em branco e preto, a chegada do homem na lua. Eliana precisou usar óculos por causa da miopia e deixou os cabelos encaracolados crescerem até a altura dos ombros.
Quase no mesmo compasso dos avanços médicos, a tecnologia voltada para a comunicação também foi melhorando a vida deles. Os respiradores mais leves permitiam deslocamento para outras áreas do hospital. O walkman trouxe a possibilidade de escutar as próprias músicas sem precisar “incomodar” mais ninguém. Os monitores cardíacos ficaram mais precisos e possibilitavam prolongar os banhos de sol. O computador e a internet trouxeram para perto dos dois os cursos on-line. Eliana, com a boca, aprendeu a pintar quadros lindos. Paulo Henrique descobriu tudo sobre programas de edição e design, o primeiro passo para os trabalhos que desenvolve hoje.
Eliana só movimenta a cabeça. Fez cursos na internet e aprendeu a pintar com a boca –Foto: Edu Cesar/Fotoarena
1/6
Os dois terminaram o Ensino Médio e o ano passado prestaram o Enem. O sonho de Eliana é fazer faculdade de psicologia, vontade que ficou ainda mais aflorada no início do ano passado. “Graças a um respirador novo, eu consegui pela primeira vez dormir fora do HC. Fui à formatura de uma grande amiga, que tornou-se psicóloga. Acompanhar a colação de grau, ver aquela festa e ainda dormir em outro ambiente foi simplesmente demais”, conta.
Já Paulo Henrique quer fazer mesmo é curso superior de cinema. E alimentou este sonho nas cinco vezes em que ficou fora do Instituto por três horas e deu uma passadinha rápida no Shopping Santa Cruz para uma sessão.
“Dormir fora eu não tenho vontade, acho que tenho receio. Quando a gente vai para o mundo, percebe que as coisas são maiores do que estamos acostumados a ver. Não sei se estou pronto para encarar isso”, diz ele.
“Não sou robô”
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Vida real: Por trás das máquinas existem seres humanos. Perto dos fios, estão as flores
Eliana, ao contrário, é uma entusiasta da tecnologia e com uma ansiedade por vezes travestida de mau-humor, espera que a chegada de novos aparelhos médicos a possibilitem deixar o hospital. Ela prepara o “ponto final” de seu livro que, em uma referência à aparelhagem que contribuiu para que chegasse aos 37 anos de vida, vai chamar de “Pulmão de Aço”, uma referência ao respirador artificial que a acompanha desde menina.
Ao longo do tempo em que esteve que na posição de paciente Eliana viu o amadurecimento da UTI brasileira e entendeu perfeitamente que a medicina hi-tech foi um dos avanços mais importantes da saúde do País.
“Mas o contato humano e a relação pessoal ainda precisam ser mais trabalhados nestes espaços”, diz. As pessoas esquecem que por trás das máquinas existem seres humanos.
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